quinta-feira, 14 de maio de 2009

Quero mais um!

Por Dias Lopes - Paladar

O turista brasileiro que desejar saborear em Paris o pãozinho branco chamado aqui de francês terá de voltar ao país natal para matar a vontade. Caso não suporte a espera, o jeito será comer o pistolet, redondo e leve, de origem belga. É preparação assemelhada. Apesar do nome, nosso pãozinho francês, com cerca de 50 gramas de peso, crosta estaladiça e miolo flexível, só existe no Brasil. É feito do Oiapoque ao Chuí. Por que, então, nós o chamamos de francês? Há várias hipóteses, uma delas fantasiosa. Conta que a receita surgiu no Rio de Janeiro, no início do século 20, por encomenda de brasileiros que iam a Paris e voltavam querendo um pão com as características do consumido na Europa. A explicação mais aceitável, porém, é que o nome estrangeiro deriva do tipo de farinha. Em toda a América de colonização ibérica, na Espanha e também na Inglaterra, empregou-se nos séculos 18 e 19 a expressão "pão francês". Segundo o historiador Carlos Ditadi, do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, "designava um produto elaborado com farinha branca de trigo, dotado de casca crocante e miolo flexível, alvo ou creme".

Foram justamente os franceses que começaram a produzir farinha branca e fina, moendo e peneirando o trigo descascado e limpo. Isso aconteceu no século 18. O rei da época, Luís XIV (1638-1715), virou apreciador daquele pão feito com um ingrediente tão requintado e caro. Enquanto isso, a população seguia comendo o tipo tradicional, escuro e rústico, à base de diferentes cereais, colhidos simultaneamente para compensar os estragos das muitas doenças nas espigas. Nobres e plebeus abonados da Europa imitaram Luís XIV. Afinal, tudo o que vinha da França era chique e bom. No Brasil, aconteceu o mesmo. Até o início do século 19, poucas pessoas tinham acesso à farinha de trigo, vinda de Portugal, e ao pão feito com ela. O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre mostrou que a popularização dos dois produtos só começou em 1808, quando a corte de d. Maria I e do então futuro rei d. João VI se estabeleceu no Brasil, fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte que invadiram Lisboa. Os soberanos lusitanos eram adeptos do pão branco. E adoravam a França.

Luís da Câmara Cascudo, no segundo volume de História da Alimentação no Brasil (Editora Itatiaia de Belo Horizonte/Universidade de São Paulo, SP, 1983), esclarece a contradição. O inimigo da corte portuguesa era Napoleão Bonaparte, não a cultura francesa, cuja influência se estendia a tudo. "Da França vinha o modelo, perfumes, roupas, porcelanas, cabeleiras, mulheres, saudações, tapetes, panos d’Arras, sofás, cadeirões, armários cinzelados e um mundo de coisas graciosas e dispensáveis", diz Cascudo. "Essa influência na etiqueta, indumentária, alcançou a mesa, arranjos, decoração, iguarias." Cardápio era chamado de menu, onde jacutinga e pombos caçados na Serra de Petrópolis e assados no forno de barro viravam jacutinga e pigeons sauvages à La Guanabara, enquanto salada de frutas em geleia se tornava gelée macédoine aux fruits. Segundo Cascudo, o padre Luís Gonçalves dos Santos, apelidado "o Perereca", historiador da época, jamais escrevia merenda ou sobremesa, por exemplo, embora nunca tivesse saído do Rio de Janeiro. "Só lhe acudia à pena de pato o dessert francês", divertiu-se. Sem esquecer que d. João VI era francófilo de batismo, pois teve como padrinho o rei Luís XV, da França. Entretanto, foi lenta a difusão da farinha de trigo, quase toda importada, como até hoje acontece.

Durante todo o século 19, viajantes estrangeiros se queixaram da falta de qualidade do pão brasileiro, quando não o encontravam substituído pelos beijus, farofas e mingaus de mandioca. Habitualmente, derivava de outros grãos, inclusive do milho. A mudança começou no Rio de Janeiro. T. von Leithold e L. von Rango, no livro O Rio de Janeiro Visto por dois Prussianos em 1819 (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1966), documentaram a existência de padeiros franceses na então capital do Brasil e reclamaram do alto preço do pão, assinalando que a farinha vinha dos Estados Unidos. Já o historiador Ditadi informa que, em 1816, a cidade tinha meia dúzia de padarias; em 1844, o número saltou para 33. Obviamente, o pão dito francês não era igual ao de hoje. Aconteceram mudanças. O trigo foi selecionado geneticamente, a agricultura se qualificou. Surgiram equipamentos modernos de panificação, reduziram-se os tempos de preparação, algumas vezes comprometendo a qualidade do pão. Em 1920, como lembra a enciclopédia francesa Larousse Gastronomique (Larousse-Bordas, Paris, 1996), apareceu a amassadeira mecânica. O forno, antigamente alimentado por lenha, depois a carvão, hoje é movido a eletricidade ou gás. O Brasil deixou de ter a França como modelo. Mas continuamos a tratar como se fosse estrangeiro nosso trivial pãozinho de cada dia.

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